Povos dos
sambaquis na Mata Atlântica
Germano Woehl
Junior
Quando os
portugueses pisaram aqui pela primeira vez, em 1500, não imaginavam que aquele
cenário paradisíaco em sua volta, a exuberante Mata Atlântica, já teria levado
ao colapso uma civilização inteira cerca de três mil anos antes. Trata-se dos
povos dos sambaquis, que apresentavam características mongólicas, isto é, face
larga, nariz achatado e olhos puxados e habitaram nosso litoral entre 3 mil e 5
mil anos atrás, de acordo com os estudos dos fósseis
encontrados.
Os sambaquis
nada mais são do que montes de conchas de ostras, uma espécie de "lixão",
deixados por estes nossos irmãos brasileiros da pré-história e concentram-se
principalmente no litoral de São Paulo até Santa Catarina. Além das conchas de
ostras, são encontrados também objetos fabricados, cascas de siris e
caranguejos, muitos esqueletos de animais e de humanos, revelando que os povos
dos sambaquis costumavam enterrar seus mortos nestes locais. Apesar da
importância científica dos sambaquis ser reconhecida desde 1845, sua destruição
foi quase total - e, lamentavelmente, continua até os dias atuais. Essas
montanhas de conchas eram utilizadas para fabricação de cal, atividade que foi
proibida em São
Paulo em 1952 e no restante do País, em
1961.
Da mesma forma
que o lixão de uma cidade revela o nível cultural e os hábitos das pessoas, os
sambaquis nos fornecem muitas informações sobre a cultura, religião, hábitos
alimentares, "tecnologia" etc. desses habitantes de nossa pré-história.
Descobriu-se, por exemplo, que eles usavam fragmentos de ossos para fabricarem
pontas de flecha e anzóis e que já dispunham também de "tecnologia" para captura
de peixes e animais grandes, pois nos sambaquis são comuns os esqueletos de
cações e golfinhos.
Os sambaquis
apresentam particularidade comum em suas estruturas: na base encontram-se
conchas de ostras bem grandes e o tamanho delas vai diminuindo à medida que a
altura do monte aumenta; nas camadas superiores, estão depositados outros tipos
de conchas de organismos não muito apetitosos e uma maior quantidade de restos
de peixes, caranguejos do mangue etc. Métodos científicos de datação revelam
que, em média, o monte de conchas levava 40 anos para ser formado e que muitos
anos depois alguns sambaquis passavam a receber novamente o depósito de conchas
de ostras grandes no topo, mas só numa pequena quantidade e num período bem
curto.
Nossos irmãos
brasileiros da pré-história não figuraram entre os povos mais avançados da Terra
daquele período, contudo eles nos deixaram mensagem muito importante, um alerta,
que todos nós deveríamos levar a sério: os recursos naturais da Mata Atlântica
são limitados. As evidências científicas demonstram que para sobreviver como
simples coletores os povos dos sambaquis aniquilavam quase todas as formas de
vida de uma região (desde ostras até peixes, aves e mamíferos, mas comiam também
frutas e raízes). Depois, partiam para outra região, devoravam tudo e assim por
diante. Ou seja, eles iam esgotando os recursos naturais nas regiões por onde
passavam e não se davam ao luxo de rejeitar nem saracuras e garças, pois ossos
dessas aves são comuns de serem encontrados nos "lixões" deles. Esses
brasileiros, habitantes da mata atlântica, viveram assim por quase 2 mil anos,
para então a civilização deles entrar em colapso e ser
extinta.
O modo de vida
do homem dos sambaquis é o que mais se aproxima da interpretação que fazem por
aí do conceito de "uso sustentável dos recursos naturais", e não deu certo,
embora a sociedade deles tenha durado, pelo menos, dois mil anos. E nossa
sociedade, atual ocupante da Mata Atlântica, quanto tempo durará? Temos hábitos
de consumo devastadores, que geram toneladas de lixo todos os dias, poluem os
rios e o solo com produtos tóxicos e consomem recursos naturais numa escala
assustadora, um modo de vida muito, muito longe, portanto, de ser sustentável.
Além disso, nossa população atinge números alarmantes, passamos dos 180 milhões
(a dos povos dos sambaquis nunca chegou a ser muito numerosa, segundo os
especialistas), o que aumenta ainda mais os desafios para alcançamos a tão
necessária sustentabilidade.
Já arrasamos a
Mata Atlântica: em apenas 40 anos desmatamos mais do que se desmatou na Europa
em 2 mil anos. Em nenhum momento da história da humanidade se desmatou tanto
como no Brasil nestes últimos anos. A ciência consegue prever as conseqüências
trágicas dessa insanidade: além da brutal perda de biodiversidade estamos
arruinando nossos recursos hídricos, tão estratégicos para o desenvolvimento das
cidades, com um mínimo de qualidade de vida.
Restam apenas
vestígios da Mata Atlântica. É inadmissível que medidas efetivas para tentar
salvar estas últimas áreas, como a criação de unidades de conservação (parques
nacionais, por exemplo), sofram tanta resistência por parte dos degradadores.
Usam argumentos de que isso vai travar o desenvolvimento, como se a destruição,
por exemplo, do que sobrou da majestosa floresta de araucárias, zero vírgula
alguma coisa por cento da floresta original, seja imprescindível para resolver
os problemas econômicos do País.
Vale a pena
conhecer o Museu do Sambaqui em Joinville e também visitar algum dos casqueiros
que milagrosamente escaparam da destruição - tanto em Joinville como no litoral
paulista há ainda muitos deles -, para contemplá-los e fazer profunda reflexão
sobre nossa relação com outras formas de vida com as quais devemos compartilhar
o meio ambiente.
Germano Woehl
Jr., do Instituto
Rã-bugio para Conservação da Biodiversidade
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